Rock Band, Guitar Hero e musicalidade

por Mário Megatallica

Alguns dias atrás um amigo meu me fez um desafio: vencê-lo no jogo Guitar Hero. Ele me disse que já conseguia tocar a música "Master Of Puppets" do Metallica inteira, em níveis diferentes e gostaria de ver se eu conseguiria fazer o mesmo. Na verdade foi uma pequena provocação de alguém que não sabe tocar instrumento algum para alguém que tem base teórica e prática em Música. E desde que jogos como Rock Band e Guitar Hero surgiram sou desafiado constantemente pelos meus amigos, principalmente pelos que não sabem tocar nenhum instrumento musical. Levo tudo isso na brincadeira obviamente, mas é com muita surpresa que vejo pessoas que nunca pegaram nenhuma aula de instrumento se darem bem nestes jogos e indo além, se mostrando interessados em estudar Música - a ponto de desafiar quem já conhece bem o assunto. A verdade é que estes jogos, além de serem uma boa forma de diversão, tem despertado a musicalidade dos seus jogadores.

Para quem ainda não conhece o Rock Band ou o Guitar Hero, eles funcionam assim: você é um personagem que vive a história de um rockeiro em busca da fama em sua carreira, e para atingí-la, deve tocar com a sua banda músicas de diversos artistas. Quanto mais shows você faz, mais dinheiro você arrecada, e com o dinheiro que ganha vai comprando mais equipamento e acessórios. Os jogos são divididos por fases (turnês) e em cada fase aumenta o nível de dificuldade das músicas; se você errar, o público te vaia e você está praticamente arruinado. O interessante, nos dois jogos, é que em vez de usar os controles convencionais, você pode jogar com controladores em forma de instrumento, ou seja, com guitarra, bateria e microfone. É daí que vem a grande sensação de estar atuando como um legítimo "rockstar" ou um verdadeiro músico. Quem vê alguém jogando pensa que ele está tocando de verdade! Além de que quem joga pode ter, por alguns minutos, a sensação de ser um Zackk Wilde, um Kirk Hammet, um Lemmy Kilmster, um Eddie Van Halen, ou muitos outros músicos famosos que viraram personagens destes jogos.

Boa parte dos que se dão bem no Rock Band ou no Guitar Hero acabam procurando aulas de música para desenvolverem a sua "técnica", para aprenderem a tocar de verdade as músicas dos jogos. Isso, por si só, já é algo muito interessante, pois ninguém esperava que estes jogos fossem causar este "efeito colateral", ou seja, despertar a musicalidade das pessoas que se divertem com eles. Muitos professores, inclusive, nem conhecem este tipo de jogo e estão sendo surpreendidos por esta demanda inesperada. Em contrapartida, estão tendo que se adaptar ao modo de aprender destes novos alunos. É isso mesmo: quem teve o primeiro contato musical através do Rock Band ou do Guitar Hero geralmente segue um esquema de aprendizado baseado nestes jogos para desenvolver a técnica necessária para executar músicas em instrumentos convencionais. Como assim?

Li numa revista semanas atrás que um professor de bateria teve uma experiência diferenciada com uma de suas alunas devido ao fato de ela jogar o Rock Band. Ele passou um exercício para ela treinar em casa e, uma semana depois, percebeu que ela não só executava muito bem o exercício como também já fazia ritmos um pouco mais difíceis do que ele havia ensinado. Percebendo isso, chamou a aluna para conversar e esta revelou que jogava Rock Band com um pequeno kit de bateria que o fabricante disponibiliza. Foi então que ele resolveu testar até onde ela poderia se desenvolver com o jogo; pediu para ela tocar determinadas músicas no jogo e depois tocar as mesmas músicas na bateria convencional. A aluna se deu bem nos dois testes, pois o que ela aprendeu jogando ajudou-a a executar com mais facilidade os exercícios no instrumento real. Porém, um outro teste que o professor aplicou me chamou mais atenção. Ele resolveu testar a capacidade da sua aluna em ler partitura para bateria, já que na leitura dos sinais do Rock Band ela estava se saindo muito bem. Ao pedir para que ela executasse um exercício lendo diretamente na partitura do insrumento, a aluna fez uma proposta surpreendente: pediu para que o professor a autorizasse a colorir as notas das peças do instrumento - que geralmente são escritas com a cor preta - com as mesmas cores que ela estava acostumada a ver no jogo. O professor acabou autorizando que ela modificasse a partitura. Resultado: ela leu o o exercício na partitura com mais facilidade do que quando as notas eram todas escritas com a cor preta.


Partitura musical
Confesso que, quando vi esta constatação deste professor, eu fiquei chocado. Afinal, todos que estudam ou estudaram música sabem que a partitura é algo sagrado por ser parte fundamental da "gramática da música", isto é, é como um livro que ensina uma nova linguagem - a linguagem musical - e preserva todas as regras que regem essa linguagem universal. São estas regras, juntamente com os diversos símbolos musicais, que garantem que a leitura de uma partitura seja universal e possa ser feita por qualquer músico de qualquer lugar do mundo; por isso qualquer modificação na partitura é altamente não recomendável. No entanto, o professor em questão resolver arriscar e se deu bem, afinal, teve o resultado que esperava, já que provocou a melhoria da leitura de sua aluna. Tal fato me levou a pensar primeiramente que este tipo de atitude não deve ser levada adiante, muito menos divulgada ou estimulada, já que põe em risco a integridade da informação musical. Por outro lado, me fez pensar que talvez seja válido abrir mão do "purismo pedagógico-musical" em nome de uma boa qualidade de ensino, fazendo com que o professor possa usar todas as ferramentas possíveis no exercício de sua função, autorizando até mesmo que seus alunos modifiquem a partitura de acordo com suas necessidades pedagógicas. Seria algo semelhante à nossa recente Reforma Ortográfica, porém, no âmbito musical, em nome de um bom ensino musical (com certeza os teóricos conservadores vão querer me aniquilar depois de lerem isso). O único problema que poderia surgir de "exceções" como essa é que o aluno poderia ficar condicionado a ler somente partituras adaptadas ao seu modo de leitura particular - no caso dessa aluna, uma leitura derivada do jogo em questão - tornando-se a exceção em uma armadilha que limitaria a capacidade musical do aluno, e por conseguinte, algo muito arriscado do ponto de vista pedagógico.

Estas e outras discussões surgem naturalmente devido a avanços tecnológicos que nos cercam e contra os quais não adianta lutarmos. E com certeza jogos como o Guitar Hero e o Rock Band - que representam bem este tipo de avanço tecnológico - são uma boa fonte para a quebra de certos paradigmas e para o surgimento de novas tendências musicais relativas ao ensino, ao aprendizado, ao comércio, à diversão, etc, causando uma pequena revolução na forma de interagir do ser humano com uma de suas principais manifestações culturais e sentimentais e só o tempo poderá dizer se a nossa relação com este tipo de jogos continuará sendo amistosa como tem sido até agora. Por hora acho melhor pegar meu violão e treinar algumas músicas para tentar vencer meus amigos no Guitar Hero...

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